Opinião
Foram-se as memórias de tempos passados
por Redação JM
Dizem que os nascidos em julho, ou "cancerianos", gostam de juntar documentos, fotos, lembranças. É fato. Há oito anos, em meu apartamento, não havia mais espaço para isso e os livros. Resolvi, então, entregar parte deste "acervo" para a guarda de uma empresa, com a pretensão de lhe dar outro destino. Aluguei, assim, dois "box", espécie de contêineres, e ali depositei cerca de 64 volumes, encadernados, com meus acórdãos que almejava, depois, levar para o Arquivo Público de Bagé. E mais: quase setenta pacotes com outros habitantes: cartas, ofícos, projetos de livros, textos de palestras, CDs, cassetes, discos, fotos, revistas, acórdãos do Tribunal de Alçada, etc. E uma cadeira que sobrara do antigo Beira-Rio, com meu nome.
Como bom retardatário, fui "esquecendo" de buscar as caixas e enviar os conteúdos para os destinatários escolhidos. Aí vem a enchente. A foto diz tudo. Não sobrou nada da água e do xixi dos ratos. Minto. A cadeirinha de ferro sobreviveu.
A possibilidade de infecção por leptospirose impediu qualquer outra salvaguarda. Foi-se, descartado ao lixo, um acervo de mais de trinta anos. Foram-se as memórias de tempos passados. Agora é começar tudo de novo.
Ando pesquisando outro local para preservar o que ainda acumulei e que ora abarrota minha casa. Canceriano se apega muito.
Quando lá fui visitar o espólio umedecido e já mal cheiroso, soube de uma história dolorosa. Falecera o filho jovem de uma senhora que resolveu conservar intacto o quarto dele. Fechava-se na peça sempre que sentia lembrança do filho. Preocupados, os demais familiares, depois de algum tempo, consguiram que ela levasse o conteúdo do quarto e montasse réplica num box grande da empresa guardadora.
{AD-READ-3}Frequentemente a senhora lá ia, abria o box, assentava-se, rezava, e depois de algumas horas ia embora. Passava, assim, momentos de saudades na solidão do ambiente, seu único lenitivo.
Mas, como diz o poema de Clóvis Assumpção, "as águas não têm memória". E varreram de sobrevivência os suspiros que ainda persistiam na peça. Feneceu a nostalgia táctil, persistirá a recordação fluida que não desaparece jamais.