Memórias & Afetos
'O bureau do pai'
por Redação JM
"O bureau do pai". Era assim que eu me referia à sua mesa de trabalho. Nela, meu pai estudava, pesquisava, preparava as aulas que ministrava, na então Fundação Attila Taborda, em estruturação, a convite do próprio Dr. Attila - eram muito amigos - e escrevia seus artigos para o Correio do Sul, mais tarde para o Minuano, já não mais residindo no centro da cidade, mas na sua Granja Querência.
No "bureau", escreveu ainda seus livros de crônicas, contos e poemas: Amigo Velho I, II, III, IV e V. Este "bureau" foi feito pelos espanhóis Redondo y Gómez, escultores e marceneiros cuja oficina situava-se onde hoje é a A.R.C.O., assim como a cadeira que o acompanha, um livreiro com detalhes em vidro biseauté, uma pequena mesa de centro e duas pilastras torneadas, uma sustentando o busto de um homem beduíno; a outra, o de uma mulher beduína, ambos esculpidos em gesso branco.
Fazia parte do conjunto de móveis, todo ele em madeira nobre, quatro molduras trabalhadas com a mesma madeira contornando imagens da cultura árabe, visto meu pai ser filho de libaneses. O projeto foi arquitetado e custeado em segredo pela minha mãe, em 1956. Montado o escritório, um dia, à tardinha, esperamos o pai chegar do seu trabalho no Banco do Brasil e o inauguramos na presença dos amigos Hugo Souza, prefeito à época, e sua esposa Eda Souza. Emocionado com a surpresa e sob nossos aplausos e brindes com champanhe, Antônio Karam descerrou a faixa de cetim branco na porta de entrada do escritório.
Para mim, "o bureau" era um ponto de referência não só na casa, mas, também, na vida. Ler regularmente a National Geographic acompanhada do globo terrestre sobre ele me situou imaginariamente no mundo. Nele aprendi, também, a usar a caneta-tinteiro, o mata-borrão, a máquina de datilografia, o compasso e a abrir suas gavetas conforme o pai nos ensinou. É que "o bureau" tem um segredo. A gente entrava embaixo e destravava uma das gavetas à esquerda. Todos os meus irmãos e irmã, do primeiro e segundo casamentos, passaram por esta experiência prática e afetiva com gosto de aventura.
Particularmente, "o bureau" evoca-me aquele tempo ainda vivo do tic-tac da máquina de escrever nas noites de verão, das janelas abertas para a rua, das cadeiras na calçada e das cortinas leves dançando ao som das cantigas de roda enquanto a vizinhança conversava até tarde sobre o seu cotidiano, eventualmente trocando receitas. "O bureau", então, é um objeto real e simbólico do qual nos separamos agora para doá-lo ao Museu Dom Diogo de Souza. Com a doação do "bureau do pai" e por meio do relevante trabalho cultural realizado por este Museu, trabalho, aliás, importantíssimo para as cidades porque o trabalho da memória é um trabalho civilizatório, eu, Heliete, e meus irmãos Francisco, Antônio, Fernando e Simone, damos nossa contribuição ao registro da história de Bagé.
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Texto: Heliete Karam | Bagé (Granja Querência), 13 de março de 2024