O baile dos cachorros
Da tradição oral, a essência do um povo.
Todos ouvimos essas histórias, de Fadas e Princesas,
do Tigre e do Macaco, do Pedro Malasartes...
Nem todas foram escritas ou transcritas.
Andam perdidas naquela imensa janela entre a vigília e o sono.
De uma feita, a cachorrada chimarrona destas pampas, devido às suas qualidades de perseverança, organização e lealdade, foi premiada por Deus com um baile, a ser realizado em terreno santo e bento. São Pedro seria o mestre-sala e o Arcanjo Gabriel e suas falanges, o serviço e polícia da festa. Grande alarido se fez nos matos. Em cada região, o assunto era só esse: – Bueno, se a sarna me afrouxa um pouco, eu esparramo a guaiaca e danço a noite inteirinha com a cusquita barbuda lá de Pinheiro Machado.
– Ah, mas eu gosto mesmo é de dançar uma vaneira bem maxixada. De preferência com alguma ovelheira peluda e que tenha dobradiça nas cadeira, igual minhoca n’água fervendo. Por aí seguia a volta e, na semana do baile, São Pedro em pessoa escolheu um pelado de várzea às costas do Camaquã, abençoou o local e mandou que o Arcanjo Gabriel e sua gente construíssem um “carramanchão”, onde se realizaria o surungo. Foi todo armado com madeira dos matos dali mesmo. O teto, ou quincha, feito de uma planta de folhas largas, muito entremeadas e entupidas, chamada mata-olho. Ficou uma beleza. Podia chover à vontade, se Deus quisesse, e não queria.
A orquestra foi encomendada: três bugios roncadores, dos campos do alto da serra - bicho que canta que dá gosto. Dois graxains guitarreiros, ponteadores de primeira. Um tamanduá correntino, de cordeona botoneira, um coati, de Caçapava, mui bueno de bandoneon, um picapau no pandeiro, uma cigarra no agê e tava pronta a vaneira.
E como que prenunciando que a coisa ia ficar feia, já se conhece um ditado que diz que cachorro e gente não sabem fazer junção sem terminar em peleia. No bolicho do Polsério, um carneiro mui respeitado, nas bandas do Cerro do Malcriado, as coisas se anunciavam de antemão. – Me disse a jaguatirica, decerto loca de inveja, que aposta até a cor das pinta que o baile vai dar em treva. - Dizia um cuscote tareco, encostado ao mostrador.
– Vai dar é fudunço bem feio, se acaso a gata atrevida, vier bancando a metida, se introduzindo no meio. - Respondeu um cachorro vinagre, no quinto liso de canha, cuidando a entrada de um leão baio, conhecido na zona por desavença e destruição de propriedade. – Ah, tão falando no baile? Então não me chamo Bento Leão Manoel de Baio se não danço a noite inteira de espora, no meio da cachorrada.
Não viu que tava oitavado, num canto, contra o balcão, o cachorro chimarrão mais valente das redondeza, chamado Crioulo de Souza Neto. Resultado do serviço: o tal do leão valente dormiu o resto do dia com dois mangaço na ideia. Chegado o dia do baile, já quase à boca da noite, o alvoroço era grande, o “carramanchão” todo fechado, à espera das autoridades. Um aglomero sem igual. Nisso, o céu se abre, num final de tarde vermelhando o poente e descem, numa carruagem de nuvens, São Pedro, o Arcanjo Gabriel e sua falange celeste.
Ao abrirem as portas, a confusão foi grande, cada cachorro querendo entrar primeiro, pulando e latindo, enquanto os anjos iam botando ordem na anarquia e organizando as filas.
Foi quando São Pedro chegou à porta da festa, com semblante contrariado. Soou a trombeta do Arcanjo e se ouviu a voz do apóstolo, com jeitão meio de brabo: – Vai começar o fandango. Mas aqui não se admite, em terreno santo e bento, essa falta de respeito. Ora, onde já se viu cachorro dançar com o rabo! Ordem dada, ordem cumprida. E, cachorro que passava, deixava a cola guardada, devidamente nomeada e por certo, numerada, ligando o nome à pessoa, ou cachorro no caso, num gancho, dependurada.
O baile corria frouxo e a orquestra campeira emendava o repertório, de mazurcas e vaneiras, chotes, polcas e valseados, milongas e chamarritas, tiranas, valsas e marchas. E assim como já foi dito, que cachorro e gente não sabe fazer junção sem terminar em peleia... Foi, no mais, que num “upa” e por causa de china, a bem se entenda, cadela, estourou uma peleia de proporções babilônicas. Diz que um galgão castelhano, correntino ou entrerriano, acostumado na lida, escondeu palmo de adaga nas costelas de um cuscão. Um amigo do tal cusco apresilhou um mangaço pela cabeça do galgo. Espatifaram o candeeiro e seguiram peleando no escuro, com o clarão dos tiros de quarenta e quatro iluminando a fanfarra. E o coati de Caçapava, que não conhecia susto, empurrando na bandona um tangaço compassado.
{AD-READ-3}Começou a voar cachorro porta-a-fora e, no apuro e na escuridão, iam passando na porta e pegando qualquer rabo ali à mão, sem que os anjos pudessem interferir e entregar o rabo certo ao penitente. Houve até algum mais maula, riscado a relho dobrado, que nem quis pegar o rabo que ficou dependurado: - o tal do cusco rabão!
O resultado da história: como castigo e recado, Deus não desfez a troca dos apêndices caudais. E é por isso que os cachorros, quando se encontram, cheiram no rabo um do outro – com certeza procurando o que se perdeu desde o baile, e jamais foi encontrado. E assim, assunto fechado.