Mens sana
- Essa desgraçada não pode ficar com tudo. Parece até castigo de Deus.
- Castigo não sei… com certeza uma tragédia! Mas penso que podemos manter a fé em Deus. Tudo se acerta.
- Não é possível, Anselmo. Ela abandonou os filhos pequenos e foi chinear na capital. O pobre do Artur ficou cuidando das crianças. Se não fosse nossa ajuda, o que seria deles? Já não bastava esse menino ter aguentado a malvadeza do nosso irmão Laurindo.
- Eu sei, mana! Mas o caso não é tão simples. Foi como o advogado explicou. Nosso irmão vem doente há tempos. O natural é que morresse logo. A casa e os campos iriam direto pro Artur.
- Quem imaginaria que ele fosse ficar em estado igual ou pior do que o pai? E por causa de uma besteira.
- Eu falei pra ele que o telhado estava molhado, que era perigoso subir pra ver a goteira. Mas herdou a teimosia da família.
- Eu só queria descobrir, Anselmo, quem avisou a Sílvia? Mal Artur sofreu o acidente, chegou de auto com o advogado, o pedido de tutela das crianças em mãos.
- O pior é que nunca se ocupou dos filhos. As crianças já não lembram dela. Por sorte, temos procuração do Artur. Não fosse isso, teria levado os inocentes na hora.
- Não quero pensar no que vai acontecer se o Artur morrer antes do mano Laurindo.
- Doutor Franco, passe. Vou pendurar seu casaco e chapéu. Qual doente o senhor quer ver primeiro?
- Vamos ver o seu Laurindo primeiro. O caso dele é mais tranquilo. Seu sobrinho é quem me preocupa mais.
- Pois é, doutor. O Laurindo se mantém na mesma. Os olhos cravados no teto, sem emitir som, apenas respirando. Difícil engolir a comida. O Artur não recobrou a consciência.
- Sim, sim. Foi como eu disse ontem. Apenas o tempo vai mostrar. Como vai, dona Lúcia?
- Bem, doutor, passe. O pobre do Laurindo na mesma.
- Muito bem. Vamos auscultar o pulmão. Hum! Limpo. Mas parece ter febre.
- Nunca havia tido.
- Mas está sim. Nada que altere o quadro nas próximas horas ou dias. Vamos iniciar o quinino no seu Laurindo. Uma colher de chá de pó em meio copo de água, duas vezes ao dia. E vamos levando. Agora, o Artur.
- Deixamos o quarto na penumbra, como o senhor pediu.
- Sim. Nesses casos de trauma encefálico, quanto menos estímulos sensoriais, melhor pro paciente. Vamos olhar as pupilas. Alcance-me a vela aqui, dona Lúcia. Hum! Irregulares como ontem. A hemorragia cerebral não cedeu nesses dias.
- E agora, doutor?
- Só nos resta abrir o crânio pra deixar o inchaço e o sangue sair, nossa última tentativa. Como já disse, não acho que ele consiga sobreviver.
- E ele pode morrer no procedimento, doutor?
- Infelizmente, sim, dona Lúcia. Se bem que, no estado atual, ele pode morrer a qualquer momento. Esses casos são assim. E agora os senhores vão ter que decidir se querem ou não que eu
faça a cirurgia.
- Ai, doutor Franco, que situação horrorosa, meu Deus!
- Eu sei. Mas não podemos adiar mais essa decisão. Se seguir assim, com certeza o Artur vai morrer. Se abrimos, tem pequenas chances. Se Deus permitir, ele vive. Eu volto às três horas com o material cirúrgico. Vou precisar de ajuda. A senhora me auxilia?
- Sim, doutor.
- E agora, Lúcia? Que vamos fazer?
- Vamos fazer o procedimento e ter fé em Deus. Aquela lambisgóia não há de levar nossos sobrinhos e nem torrar os campos e a casa do nosso irmão. Deus é maior!
- Eu vou falar com o advogado de novo. Quem sabe ele não nos diz alguma coisa diferente.
- Eu acho bem, Anselmo. Conversa com ele e vê as possibilidades. Com certeza não podemos trazer o tabelião aqui. Aquelazinha e o advogado já tomaram pé da procuração, que se limita a gerir as crianças. Não temos poderes pra dispor dos patrimônios, por enquanto.
- Então, dona Lúcia. Eu vou fazer uma incisão no couro cabeludo do Artur. Depois vou pegar esse trépano e o martelo e vou fazer uma abertura quadrada bem no lobo frontal, no coco, como dizem os leigos. A senhora não pode se assustar, pois vai sair muito sangue. É normal. O perigo é ele não suportar quando aliviar a pressão.
- Eu aguento. Já vi coisas piores na vida.
- Já temos as toalhas e água quente. Vou dispor meu material aqui na mesa de cabeceira. É muito importante que a senhora segure a cabeça do seu sobrinho de maneira firme. Se eu entro demais com o trépano, mato ele na hora.
- Não se preocupe, doutor, faça o seu trabalho.
- Já rebati o escalpo, vou começar o corte do osso.
- Dona Lúcia, corre aqui, pelo amor de Deus, eu acho que o Seu Laurindo tá morrendo.
- Vem cá, Maruca, segura a cabeça do Artur pra mim.
- Segura essa toalha, Maruca. Aperta contra a cabeça do Artur. Eu só abri a pele. Vou ver o Seu Laurindo.
- Ai, meu Deus, o Laurindo está morrendo.
- Está, sim, já parou de respirar. Não temos nada a fazer, a não ser incluí-lo em nossas orações. Vamos atender o Artur, que ainda tem chances.
- Todas as partes presentes, com seus advogados. Diante do falecimento de Laurindo e de seu filho e sucessor Artur e tendo examinado os documentos, decido que as crianças e o patrimônio
ficarão sob a tutela dos tios do falecido Artur, uma vez que estes detêm procuração para gerir as crianças.
- Senhor juiz, com toda a vênia, entendemos que as crianças devem ficar com a mãe na ausência do pai, e que a genitora tutore os bens dos filhos.
- Senhor advogado, o ilustre rábula esquece que a senhora em questão, sua cliente, abandonou os filhos há três anos, sequer cobrando notícias do que era feito das crianças. Como advogado da família, incontáveis vezes acompanhei os infantes clamando pela mãe ausente.
- Nobre colega, minha cliente não procurou os filhos por medo de reprimendas e abusos por parte do falecido sogro, conhecido por seu gênio violento. Porém, sempre se manteve informada sobre as condições dos filhos.
- Senhores, a decisão está tomada. As crianças e seus bens serão tuteladas pelos tios-avós paternos, senhores Anselmo e Lúcia, até que ambos alcancem a maioridade.
- Dona Lúcia, quê que eu faço pro almoço das crianças?
- Olha, Maruca, faz um arroz com charque, uns bifes e quem sabe uma salada de cenoura e alface.
- Ah! Eu gosto muito de alface e carreteiro.
- Mas do que é que tu não gosta, Anselmo? Come pior que frieira!
- Dona Lúcia, outra cosa. Faz dias que eu procuro o veneno que tava na prateleira mais alta da despensa. Aquele pó branco que a senhora mandou misturar no queijo, pros rato.
- Ah sim! Eu botei no forro do meu quarto pra matar um que andava por lá.
- E matou o rato, Lúcia?
- Claro, Anselmo. Morreu na hora que tinha que morrer.