Foram eles
O ataque começou durante a noite. Quando a coisa piorou, papai me trouxe pra cá. Eu já não sou mais criança, tenho quinze anos, podia estar ajudando os outros, como fazia antes, passando munição embolsada no avental pro pessoal nas janelas. Não é certo ficar tanto tempo escondida. Isso é coisa de gente covarde. O correto seria sair e enfrentar, desse o que desse. O que teria sido feito da nossa gente? O mais certo é se aninhar bem e esperar. Quando passar o ataque, o papai vem me tirar daqui. Que sede! Ainda se esse lugar fosse um pouco maior. E não se escuta nada de fora.
Não sei quanto tempo passou, quanto dormi. Nem sei quanto tempo faz que estou aqui nesse porão. É tão pequeno e tão escuro. Filtra muito pouca luz da porta escondida atrás do armário de prateleira. O papai disse que vinha e sei que ele vem. Mandou ficar quieta e sem fazer nenhum barulho. Vou me aninhar e dormir mais.
Não consegui aguentar e fiz xixi perto da porta. Por sorte não veio até onde está minha cama. Sinto o cheiro da urina, mas não consigo ver e não estou molhada. Deve ter escorrido pra algum lado. Acho que já passou mais de um dia. O papai não me deixa fazer quase nada desde que mamãe morreu. Foi tão triste, ela se consumindo dia após dia; e parecia que andava tão bem. Segundo o doutor Arnaldo, a tísica é assim mesmo. A pessoa piora de repente. Ela não me deixava chegar perto. Sinto tanta falta do cheiro do seu cabelo, cheiro de terra molhada. Coitada, suava tanto e ficou tão magra. Papai não saía de perto. Ouvi os amigos dizendo, no escritório, que ele tinha que sair, ir no cabaré da Donana ou mesmo montar casa pra alguma rapariga, pra se aliviar, que não era possível viver só na beira da cama da mulher doente. Embrabeceu. Não era momento para aqueles assuntos, tinha filha pra criar. Ouvi também que o doutor Arnaldo não tinha mais esperança, morreria nos próximos dias. E assim passou. Pensei em morrer também. Mas papai não me deixou sozinha, sempre junto comigo. Me levava até para a intendência com ele. Quando os maragatos tomaram a cidade e tivemos que vir para a catedral, buscou um esconderijo pra mim, caso tomassem de assalto. Que medo! Ainda não sei se invadiram ou não. Eu sou covarde mesmo, deveria ter saído. Mas papai morre se me acontece alguma coisa.
Mesmo ajoelhada junto da porta, não consigo escutar nada. Aconteceu alguma coisa muito ruim. Já era pra terem voltado. Mas ele disse que podia demorar mesmo. Iriam brigar de qualquer jeito, na bala e a ferro branco. Não vão entregar a igreja. Quando terminaram os mantimentos, começaram a carnear os cachorros, pobrezinhos. Eles nem gritavam quando morriam, queriam ajudar até o fim. E comeram ratos também. A carne até que não é ruim, é carne. Quando os maragatos se aproximaram, papai quis me mandar pra Rio Grande, pra casa da Tia Jorgina. Já era crescida, fiquei! O padre ajudaria a me cuidar. E havia outras mulheres. Nenhum perigo pra mim, pelo menos com nosso pessoal. Se invadissem, as mulheres seriam atacadas logo que passassem os homens na adaga. Eu entendi. Eles iriam nos usar como as éguas.
Não vou esperar mais, papai há de entender. Decerto, se tomaram a catedral, não mataram o padre. Isso eles não fazem! O porão da igreja é muito escuro, vou sair tateando até a claridade que vem pra baixo. A prateleira cedeu, consigo ver um pouco da luz da porta. Ruído nenhum, vou sair devagar. Subo as escadas do porão até a sacristia, na lateral da nave, atrás do altar-mor. Escuto vozes na sacristia. Quem será? Tenho medo! Esta madeira velha dos degraus é capaz de estalar. Ai, meu Deus, minha Virgem Maria! A voz do Padre Lauro. E se for ele, onde anda o papai? Por que não veio me tirar do porão? Ou serão os maragatos? Ai meu Deus! É a voz do Padre Lauro!
– Ai minha filha, tinha me esquecido de ti!
{AD-READ-3}– Mas onde anda o meu pai?
– Os maragatos não conseguiram entrar na catedral. O ataque foi frustrado, muito pela bravura do teu pai. Ele comandou até o final. Foram eles, minha filha, foram eles...