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A obra

Em 12/11/2024 às 15:43h, por José Carlos Teixeira Giorgis

- Amor, me empresta a revista, preciso obrar, grita o marido.

A frase aparenta episódio doméstico, talvez uma cena de novela; o verbo final, com certeza, é de pouco uso soando colonial ou do medievo. Em verdade o diálogo traduz cena rotineira, possivelmente oriunda de anátema divino, isto é, a atávica submissão aos insultos intestinais.

A prepotência deste agir fisiológico, relegado a discretos capítulos em compêndios de ciências naturais e pouco reverenciado pelo saber acadêmico, encerra curiosas passagens em seu desenvolvimento nas cidades brasileiras.

Como demonstra a existência de casas e termas, o banho era costume entre egípcios e romanos, mas passou a ser tido como um pecado entre os cristãos, eis que culto ao corpo. Não se lavar era hábito europeu, contando-se que Luis XIV viveu mais de setenta anos sem molhar os pés; que Luís XV só se banhou antes de morrer e Maria Antonieta foi para a guilhotina invicta; diz-se que Napoleão insistia com Josefina para que não o fizesse, pois apreciava seu “perfume natural”.

O hábito, existente em Portugal, migrou para cá com a vinda da Família Real. A fedentina era horrível no Rio de Janeiro, a higiene paupérrima. Dom João VI, como sua esposa  Carlota, não eram chegados ao banho, ele gostava de comer frangos gordurosos e limpar as mãos na roupa ou na carapinha dos escravos (imagine como era o beija-mão). Pela má alimentação sofria de hemorroidas e flatulência, não tendo qualquer disciplina em perfumar o ambiente com seus gases soberanos.

As exigências intestinais eram depositadas em baldes, não havia banheiros, água encanada, bidês, chuveirinhos ou papel macio, tudo era despejado para a rua pelas janelas, e salve-se quem puder.

Até que uma chuva sulfurosa atinge ao Marquês do Lavradio, exatamente o vice-rei do pedaço, bem no momento que o dândi cortejava bela dama debruçada numa sacada; enfurecida a autoridade edita decreto determinando que, antes de lançar os projéteis o morador devia gritar “água vai”, alerta depois transfigurado para “aí vai a obra”. E a corruptela “obrar”.

Durante certa Procissão do Divino, Dom João sentiu avisos intolerantes de imediata descarga de suas tripas verberando a difícil situação ao cocheiro que logo anuncia: “ O Rei vai obrar”; o cortejo estaciona, forma-se uma maciça parede encobrindo ao monarca que, socorrido com um penico, cumpre o dever imperial. Bem mais tarde surgem o abastecimento de água e a higiene pessoal.

Aqui não foi diferente. Os dejetos familiares eram entesourados em “cubos” recolhidos por carroceiros, e expurgados em lugares ermos da cidade nascente. Os cubos eram trocados periodicamente.

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Os cubeiros, em geral escravos, eram também conhecidos como “tigres”, pois tisnavam a pele escura com os salpicos do líquido amarelado que escorria dos recipientes. Quem passou por manobra militar lembra que a primeira atividade no acampamento era escavar um profundo buraco, atravessado na superfície por tábuas, onde se equilibravam os  obreiros.

Na campanha costuma-se praticar a “obra ecológica” em convênio com a natureza.

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