O príncipe de Salina
Se quisermos que tudo continue como está é preciso que tudo mude. A frase, quase um provérbio, dita até por dirigente de clube de futebol para justificar a demissão de treinador pelo fracasso do time, foi pronunciada pelo jovem aristocrático Tancredi de Falconeri a seu tio Dom Fabrizio, Príncipe de Salina, protagonista do livro “O Leopardo”, escrito por Giuseppe Tomasi di Lampedusa.
O romance retrata os fatos acontecidos em 1860 quando Garibaldi desembarca na Sicília, dando início à campanha que culminaria na unificação da Itália. Como explicado no posfácio de Maurício S. Dias, a sentença seria a expressão cabal do pessimismo histórico e da ironia que dão tom ao escrito, talvez um axioma de uma pretensa imobilidade da história. Todavia a formulação se deve, em parte, ao pragmatismo de um nobre que, com boa dose de maquiavelismo percebe a ocasião propícia para agir- “com virtude diria Maquiavel” – a fim de garantir seus privilégios de classe e autoridade, traduzindo a índole reflexiva de um nobre com 45 anos que “se vê desnorteado numa selva escura, prestes a perder o vigor e, talvez, a majestade. ”
Como ocorreu com outros escritores, o romance foi rejeitado por duas importantes editoras italianas (Einaudi e Mondadori, ainda hoje existentes). Talvez por sua natureza oitocentista que parecia condenar a Sicília e o Sul do pais a um atraso; e passado numa região marcada pelo feudalismo. Grandes obras já sofreram igual indiferença ou preconceito das impressoras. Lembre-se de “Ulisses”, monumental e revolucionário enredo que se desenrola num único dia (16 de junho de 1904, em Dublin, Irlanda), de James Joyce, que também peregrinou por numerosas editoras até ser, corajosamente, publicando por Sylvia Beach e sua pequena livraria, a Shakespeare and Company, de Paris. Neste caso, nem só o autor e o livro ganharam extraordinário sucesso, mas a firma se tornou ponto de encontro dos mais famosos escritores da época. A respeito disso já se escreveram várias resenhas.
Em nosso país igual fama de abrigo teve a Livraria José Olympio, na Rua do Ouvidor, no Rio, frequentada por José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Adalgisa Nery, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e muitos outros. Foi o caso da Livraria Globo, em Porto Alegre, com Érico Veríssimo, Mário Quintana, Athos Damasceno, etc. Aqui, no passado, os intelectuais se reuniam na Livraria Predileta (de Catão Perez; Elpídio Ruiz), num recanto com cadeiras de vime; depois na Livraria Previtali (de Angelino Previtali e Nilceu Conde), à frente das vitrines, olhando o passeio. E agora no Richarles Nogueira e sua aglutinadora cafeteria e livros.
Por instâncias e esforços do escritor Giorgio Bassani, o livro acabaria impresso pela Editora Feltrineli, em 1958. Infelizmente Tomasi di Lampedusa não o viu publicado, pois falecera em 23 de julho do ano anterior, em Palermo, de câncer pulmonar. A reedição brasileira pela Companhia das Letras, 2017, além do texto possui apêndice e complemento exemplares. Não pode faltar na estante dos bibliófilos. A fama, além do conteúdo literário d “O Leopardo”, deriva também do filme de Luchino Visconti, e o mesmo título, 1963; e de astros como Burt Lancaster (Dom Fabrizio), Alain Delon (Tancredi) e a bela Cláudia Cardinale (Angélica), ainda em locadoras remanescentes e no streaming. E tudo agora relembrado em vista do desaparecimento de Alain Delon, há poucos dias atrás. Como diria Dom Fabrizio, antes de dormir e verso de Baudelaire, “Ah, Senhor, dai-me força e coragem de olhar meu coração e meu corpo sem desgosto”.