O amigo Bochão, um cara de convicções
Domingo, meio da manhã. Abro o celular, o recado da Clarisse era conciso: tio, o pai faleceu. Há dias o Miquinha planejava uma ida a Novo Hamburgo para um almoço. Desde a mudança para São Lourenço, havia se combinado com o Ilva essa visita, mas a enchente embaraçara os planos. Soube que ele partiu sereno, na véspera até lembrara dos amigos que apreciava. Comigo, e outros, se fechavam mais de oitenta anos de recíproca e continuada estima; de convivência frequente e leal. Dele, talvez censure por um único pecado venial, quando num Baguá, ante a derrota, chutou bola para fora do estádio do Guarany... O Grêmio Bagé era um dos seus valores mais considerados. Bochão morou na subida da Osório, defronte o edifício dos militares. Lembro seus pais, as irmãs. E Noé, o irmão que cantava tangos.
Naqueles tempos, o nosso mundo girava na órbita do Clube Comercial. É bem verdade que depois do almoço, se ia para o Recreativo jogar a sinuca. O que chegava antes escrevia o nome na pedra. Discussão dava com o Ferrinho que, como tinha letra bonita, apagava o quadro e escrevia o seu, como um arabesco. De tardezinha, depois do banho, alinhavam-se, encostados na parede do clube, a sonhar e contar bravatas.
De repente desciam a Sete o Max e o Bochão, bem guapos, manuseando umas correntes presas às calças, última moda da gabolice. Essa dupla rivalizava com a do Rubinho e o Beto Barcelos. Lá pelo ano cinquenta, criou-se o Grêmio Atlético Bageense. Que até patrocinou a vinda do Santos. A turma se reunia depois do almoço, alguém trazia os uniformes lavados, e partia-se para o jogo de sábado. Seja na Praça Duque, ou em Santa Tereza, São Martim, ou campos para além da ponte do trem. Agora já estou na época dos gravatinhas do Gente Bem.
Aqui reinou João de Deus Gonzales. Um de seus afetos mais caros. Atleta do primeiro time era cerebral, metia os seus golzinhos (adivinho que está sorrindo lá no Paraiso). Não era avaro, muitas vezes “deixou de cara” o Celmar, o Tico-Tico, o Quidinho. Quando os músculos começaram a fraquejar tornou-se um treinador habilitado, um estrategista. E presidente que teve uma gestão de êxitos e prática do companheirismo. Pesquisador, conhecia como poucos a trajetória histórica do Gente Bem. Também abria dissidência quando insatisfeito. Depois dos jogos, a grande reunião era no Bianchetti, no Zoinho, ou eventualmente em outro bar. A cervejada ia longe, cada qual queria valorizar a atuação, o passe, a defesa, um gol colorido. Essa conversa rendia durante a semana, quando os encontros atravessavam a rua do clube para a frente da galeria, prática que persistiu até recentemente.
Em 1963, fui convidado para substituir Justino Quintana na Faculdade de Ciências Econômicas e lecionar “História das Doutrinas Econômicas”, que transferi para o Bochão alguns meses depois, e onde ele solidificou a sua cultura e magistério na área. João era um leitor contumaz, conhecia como poucos os movimentos sociais, as revoluções no mundo e na América Latina, a biografia dos grandes líderes socialistas, aproveitava as manhãs caseiras para o chimarrão com Ilva e a consulta de obras de fôlego. Não é fácil encontrar alguém como ele que soubesse mais de Che Guevara. Isso lhe deu estofo de coerência política, âmbito onde sempre atuou em conformidade com padrões lineares, éticos. Sua linha ideológica não se quebrantou, não desmereceu, nos diversos cargos públicos que ocupou, congruência de sua ação sempre ajustada aos padrões de seu privilegiado intelecto, o que repercutiu em suas aulas na faculdade, onde pontuou-se pela assiduidade e cumprimento dos deveres com a educação e os acadêmicos. Não procurava sobressair, embora sua importância pessoal. Vida comedida, morava distante do centro, renovava o carro sempre na mesma marca e tipo, foi um dos melhores gestores educacionais na região, de onde saiu com louvores e respeito.
Em 1963, estivemos juntos na fundação da Ala Moça do PTB, com Ney Machado, Ery Lucas, Vera Silveira, Sarita Vicêncio, Aristides Silva, Paulo Fico, Elza Moraes, Remídio Garcia, Juçara Granato Leal, Marlene Matos e outros, como conta ata de outubro daquele ano. Na época da Legalidade, Bochão e eu criamos um programa matinal na Rádio Cultura chamado “Universidade do Povo”, onde se divulgava o programa trabalhista, a reforma agrária e o brizolismo. Com a extinção dos partidos, estivemos no MDB e logo no PDT, sigla em que João de Deus teve notoriedade diretiva, tanto na secção partidária e sua chefia, como nos governos municipais e estaduais. Uma vida superlativa que engrandece a lembrança da Ilva, Clarisse e Felipe. Emerson diz que um amigo é uma obra-prima da Natureza.
Embora firme nos propósitos estou certo que o Bochão jamais abdicou da ternura, como diria seu ídolo Che.