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Maritza e os espíritos

Em 12/11/2024 às 16:31h, por José Carlos Teixeira Giorgis

Remexi a biblioteca, achei o exemplar. Ainda tinha frescor, embora passados quarenta anos. Outrora, entidades patrocinavam concursos de poesia, novelas, contos. E o Instituto Estadual do Livro consagrava ali os representantes da “Geração Oitenta”, ou seja, as melhores promessas literárias, iniciantes, inéditos alguns, “insatisfeitos com o que fazem, rejeitando o que lhes é imposto e aceitando apenas as regras que eles mesmos estão, aos poucos e a duras penas, impondo a si mesmos”.

Escritores já prontos para a luta, mas inquietos na linha de partida, com “vontade de dizerem o seu tempo, as suas urgências e desconfianças, as suas revoltas e prazeres, a sua esperança nos efeitos da palavra quando trabalhada criativamente”. Os organizadores sinalizavam os múltiplos caminhos que se entrecruzavam, cultivando a dissonância, geração para quem tudo estava para ser revisitado e revirado, “e a poeira que se cuide”, alertava o editor.

Entre os 15 da seleção estavam artistas afirmados, como Charles Kiefer, Renato Modernell, Carlos Gerbase. Novatos, como Alda Ghisolfi, jovem professora e poeta. E Maritza Pérez, licenciada em Letras, que tinha fainas no Caderno de Sábado, suplemento literário do Correio do Povo e na revista catarinense Contos e Novelas. Explicava que o conto fazia parte de um livro ainda não editado, “O leque de lêmures”, e que escrevia uma novela “Bailado de Solidagas”. Nessa coletânea, Maritza concorria com duas narrativas, “O leque de lêmures” e “O corredor dos rododentros”, onde se tentará dizer, desde já, que desvelam “pegadas” de futuros trabalhos, especialmente do que se busca examinar nesta série de artigos.

Por anos alimentei a ideia de criar uma editora e eternizar escritos bajeenses. Na época, coletei textos de Maritza e de muitos, mas o cansaço das negativas abateu a jovialidade de minhas ânsias e sepultou o projeto com a restituição dos papéis aos escreventes, na esperança de que ainda se há de se ler, um dia, os Contos bajeenses (...mas já estou a me desviar do alvitre que me veio, diria o velho Machado...). Volto à trilha.

Há meses, num entardecer, no santuário onde vive com William e filhos, cercada das árvores, plantas, móveis, quadros e, principalmente, muitos significados, Maritza reuniu amigos para mostrar “A fenda da Romã: Ofício das trevas”, obra que vai se notabilizar pela originalidade, provocante, que se insinua, e engana na inocência aparente. Um desafio aos iniciados que devem fazer o trajeto com cautela; olhos atentos; anjo protetor de soslaio. Parafraseando Quintana, diria que deve ser lida enquanto a gente serve o chá para os fantasmas. Nem se refira à escrita, exemplar, sonora, poética até quando descreve algumas crueldades.

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Na apresentação, William tranquiliza: o livro é o resultado de uma excursão de Maritza pela “onirosfera”, um relatório de fatos experimentados na terra dos sonhos, as cenas contrapostas de seres que povoavam o inconsciente da autora, algo psicográfico, em que os convidados arrombam os calabouços da censura mental. Verdadeiras fotografias de eventos em escala cinza. Cuida-se de um gênero literário que não é raro. Quem escreve sabe destes estranhos momentos, como este cronista provinciano. Ele flerta com a folha em branco, dedos no teclado, desiste. Mira a alvura da página. E, muitas vezes, de repente, o silêncio constrói a frase. Algo que palpitava no ar, que chega do nada. Muitos recorriam a drogas. Castanheda, Blake. Baudelaire, Murakami. Os que já passaram por longas cirurgias e anestésicos sentiram momentos de alucinação, “vivendo” episódios inusitados, insólitos até, nestas manobras inconscientes de ricas experiências sensoriais, muitas levadas à literatura.

Maritza consegue navegar essa visão onírica, no meio de velórios, enterros e suicídios; velas e crematórios, com rara qualidade literária. Como declara a contracapa a autora carrega uma bagagem imensa de memórias, agonias, pecados e remorsos ancestrais, transcendendo a si e suas vidas pregressas. Além de tudo, cuida-se de peculiar crônica familiar, irônica às vezes, mas instigante, envolvente. Abra-se, pois, a pozeira de Esmirna. Música de Verdi, Albioni ou Aranjuez? E que suco escondem as romãs? Continua

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