Subsídios para uma fonografia bajeense
A muitos já despertou a curiosidade histórica de saber que artista ou conjunto local foi o primeiro a gravar um disco de vinil ou outra forma de perenizar alguma música. É um ensaio que já foi tentado e que merece ser reaberto em respeito à memória bajeense, cuja tradição não destoa de outras, mercê de talentos que Bagé possui. Os arquivos das pioneiras Rádio Cultura, Difusora e Clube guardam, seguramente, importantes elementos de pesquisa, pois voz e eco de ditas produções. Essa prospecção alcança até os blocos de rua que desfilavam pela Avenida Sete entoando suas criações carnavalescas. Lembro o “Moleque Saci”, do saudoso Ivonléu Monteiro, que ainda reverbera em minhas lembranças. Muitas e inspiradas letras ficaram conservadas em discos provisórios, financiados por simpatizantes, que devem descansar em algum armário de clube ou casa. Quando iniciei o magistério, meu primeiro salário concedeu uma geladeira para o apartamento de meus pais. E uma flamante eletrola hi-fi para mim, inaugurada com um disco dos Fuzileiros Navais tocando marchas-rancho. Para esse ato solene convidei minha vizinha e aluna Maria Barcellos (depois Machado). Daí em diante, a cada sábado trazia sempre um vinil para meu acervo, que depois passei a compatibilizar com livros. E no último fim de semana resolvi remexer neste ossário, tentando também satisfazer essa indagação: qual o vinil mais antigo da produção local sob meu abrigo.
OS GUENOAS. Foi um presente do Lucídio Bandeira Dourado, que me fez generosa dedicatória. Na apresentação o então padre Fredolin Brauner, que convivera com os integrantes em aulas e apresentações (Lucídio, extraordinário acordeonista e responsável pelos arranjos vocais. Lucídio foi vitorioso em números concursos, como compositor ou executante e pertenceu a outros conjuntos; violão de Eleonir Oliveira Moreira; baixo de Adeval da Rosa; e ritmo de Carlos Adenir Moraes Oliveira) alude que tinham eles a altivez típica da fronteira, onde as lonjuras confundem a vista fazendo o céu beijar a terra. O LP, diz o religioso, nasce com tudo que se espera de uma tradição: beleza, harmonia, personalidade, convicção, delicadeza e o espírito de liberdade. São músicas exclusivas de Lucídio, Saudosa Tapera, Sonhos de Infância, Cantigas, Matreiro, Entrevero, Saudade, Noites de Serenata e tio Dorval; e de Adeval, Rumos da Ideia, Baile Bueno e Legendária Cacimbinha. Caminho da Saudade é obra de Lucídio e Adeval. O disco foi gravado em 16 canais da Central ISAEC de Produções (Porto Alegre), tendo sido produzido por José Freitas Machado e pelos técnicos Marco Aurélio, Agnaldo Paz, Francisco Anele e Augusto Almeida. Edição de Francisco Anele. Fotografia da Casa das Fotografias (Rua Bento Gonçalves, 267, Bagé). A bela capa mostra os quatro amigos à frente de uma carreta, em ambiente campestre. O lançamento é de 28 de julho de 1982.
É preciso falar de Lucídio, um dos maiores talentos bajeenses. Criando na zona rural, aqui cursou Direito na Urcamp. Logo habilitou-se ao concurso para o Ministério Público, aprovado, foi lotado em São Francisco de Paula. Depois fez as malas e foi para Brasília, onde foi chancelado como Juiz de Direito no Distrito Federal e Territórios. E daí migrou para Tocantins onde fez maior parte de sua vida funcional, artística e social. Ingressou no MP do Tocantins em 1997, tendo atuado em numerosas comarcas, como Pium, Pedro Afonso, Colinas, outras até Wanderlândia, vindo para a capital, onde integrou o Grupo Especial de Combate ao Crime Organizado. Lecionou em diversas instituições, sendo Mestre em Direito Processual Penal. Aposentou-se em dezembro de 2019, passando a dedicar-se a outro de seus afetos a vida rural e principalmente à criação de cavalos crioulos e gado Nelore. Proprietário de empresa rural em Dois Irmãos, Tocantins, e já graduado em Medicina Veterinária, Lucídio foi surpreendido pelo Covid. Faleceu aos 61 anos de vida, em 8 de junho de 2021, deixando a esposa, Marise e dois filhos, Lucídio e Liander.