A multiparentalidade biológica
Em falas ocasionais, tenho procurado ressaltar a existência de “palavras fortes” que marcam determinados institutos jurídicos. Assim, no âmbito constitucional, sobressai o princípio solar da dignidade humana. No direito privado prestigia-se a “pessoa”, erigindo-se a família como paradigma da sociedade. Ainda se exalta o caráter “líquido” desta entidade ante suas continuadas mudanças ao sabor de alteração dos costumes. Surgem novos arranjos familiares. No setor, cada vez mais, influem os efeitos da tecnologia e das ciências médicas em suas relações. Como exemplo, o Código Civil, ao tratar da filiação enumera hipóteses de ela derivar, também das técnicas de fertilização assistida, inclusive a inseminação artificial, o que significa uma vassalagem ao critério bioético.
Entre as decisões judiciais que vieram a alterar a estrutura da família nuclear (pai, mãe, filho) se aponta a possibilidade do registro duplo (e até triplo) de genitores. O que se deve, em muito, à consagração da socioafetividade. Aos pais biológicos ou adotivos vem somar-se a inscrição de mais um pai ou mãe social, ainda considerada a gestação de substituição ou transplante de útero. A regra é, assim, a multiparentalidade socioafetiva, onde a carga genética do nascituro procederá apenas do casal. Esse panorama tende a se alterar.
Segundo texto recente da lavra de Melissa Telles Barufi e Laura Affonso da Costa Levy, advogadas especializadas no diálogo entre o Direito de Família e a Bioética, a ciência já demonstrou que existe a capacidade de nascer um bebê com o DNA de três pessoas, ainda por reprodução assistida, mas com “uso de técnica de tratamento de doação mitocondrial”. Numa explicação rasa, mitocôndrias são as “casas de força” para a respiração das células, que geram energia química para elas e têm um DNA próprio, podendo dividir-se.
O procedimento é o seguinte: os pesquisadores selecionam dois óvulos, um da mãe original e outro de uma doadora saudável. Retiram o núcleo do óvulo da mãe, sem as mitocôndrias, pois estas não ficam ali, separando-se o material. O mesmo se faz com o óvulo da doadora, que tem seu conteúdo retirado e destruído, sobrando somente o óvulo com as mitocôndrias saudáveis. Retira-se o núcleo do óvulo da mãe que é, após, inserido no óvulo da doadora. Esse óvulo, que contém material genético do pai e da mãe originais, e agora também com mitocôndrias saudáveis da doadora é implantado no útero da mãe. Como as mitocôndrias possuem seu próprio material genético o bebê herdará, então, a parte do DNA da doadora.
Segundo as autoras, a técnica visa impedir que o bebê herde alguma doença genética incurável transmitida pelo DNA mitocondrial. São conhecidas até hoje apenas cinco resultados positivos, alguns no México. Não há notícia deste evento no Brasil, onde a fertilização assistida é cuidada pela Resolução nº 2320/2022, do Conselho Federal de Medicina, que não prevê algo similar. Mas caso prossigam as tentativas firma-se a existência de uma multiparentalidade biológica que, seguramente, será bem vigiada pela Bioética.