O som do silêncio
Ainda lembro. Era tempo em que o clima obedecia a padrões rígidos. O verão era quente, outono romântico. A primavera anunciava expectativas. O inverno zunia, chuviscos. Muito abrigo para sair à rua. O exílio caseiro. Destampavam-se os vidros que guardavam a figada feita em tachos ciganos. Momentos para se dedicar às tarefas do colégio, preparar as sabatinas. Matinês no domingo. Uma semana para saber como o mocinho escapava no episódio do seriado.
O hábito era ouvir o rádio. Na peça das refeições, o armário das louças namorava um aparelho Phillips, daqueles em que as válvulas se aqueciam, o som ia surgindo, até nivelar-se. À noite as famílias se reuniam para escutar as emissoras argentinas Belgrano, El Mundo; ou a Nacional e Tamoio, cariocas. A jornada começava no sábado com os programas de auditório, César de Alencar, Emilinha Borba; Antonio Cordeiro narrava os jogos do Vasco, Mário Provenzano na Tupi. Não se escutava bem rádio de Porto Alegre. Internacional e Grêmio eram afetos distantes.
Até que num certo julho, de 1946, a cidade parou para ouvir o pioneiro som da Rádio Cultura, os locutores de vozes graves, as escolhas musicais. A novidade das dedicatórias, os ouvidos colavam às paredes de galalites, podia haver algum recado. Nos domingos, ao entardecer, acontecia um rádio baile, muitos jovens se reuniam em casa de alguém para dançar boleros e sambas-canção. Às seis da tarde um frei comandava a prece com Ave Maria de Gounot de fundo musical. Na hora do almoço o programa da Casa Ramos, entremeava oferta de ponchos, alparcatas e bombachas com a música do Pedro Raimundo. Na hora da sesta os avisos para a campanha. Até novelas, e de autores bajeenses, eram irradiadas. Os intérpretes tinham a fama dos artistas do filme da sessão vermû.
A transmissão das corridas de automóvel, as carreteiras até o Banhado dos Carneiros. Os programas de auditório, onde mais tarde luziriam Teixeirinha e Mary Teresinha. Os programas políticos. A transmissão do futebol, estendiam-se cabos do estúdio até o campo. Quando Mário Codevila e Otacílio Fontana foram para a Difusora, onde eu comentava partidas narradas por Lauro Lima e Olmes Leguísamo, fui cooptado por Adauto Petry e fiquei vários anos na Cultura, depois com Vacionir Lopes, Alcides “Tidão” Martins e Edgar Muza, este com seu eterno Visão Geral, ainda atuante.
Mas tecnologia atacou com as FMs, antes exclusivamente musicais, hoje pau para toda obra. A Cultura lutou muito para sobreviver, com Claudiram e Saliba. Mas teve de se ajoelhar à realidade fática. Silenciaram os velhos transmissores. Emudeceram os microfones. E com eles setenta e sete anos da história bajeense.