Região
Plano de ação busca conservação de 30 espécies ameaçadas no bioma Pampa
por Redação JM
Por Sidimar Rostan
Capaz de sobreviver em poças rasas, temporárias e isoladas, na zona de várzea do rio Jaguarão Chico, uma rara espécie de peixe anual pode desaparecer com o processo de conversão de áreas nativas do bioma Pampa em culturas agrícolas. Longe de ser uma exceção, o contexto de alteração da paisagem natural do Austrolebias quirogai, encontrado no município de Aceguá, na fronteira com o Uruguai, integra os cenários de outros 29 alvos do Plano de Ação Territorial para Conservação de Espécies Ameaçadas de Extinção da Campanha Sul e Serra do Sudeste (PAT Campanha Sul e Serra do Sudeste), coordenado pela Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura do Rio Grande do Sul.
Com o objetivo de melhorar o estado de conservação de 16 espécies da flora e 14 da fauna encontradas no Pampa, o PAT Campanha Sul e Serra do Sudeste prevê 35 ações orientadas por objetivos específicos que incluem a difusão do conhecimento técnico-científico, a promoção de boas práticas, a contribuição para a criação de instrumentos legais de proteção ambiental, a prevenção e mitigação dos impactos das espécies exóticas invasoras, a qualificação da gestão ambiental de atividades de infraestrutura para agricultura, silvicultura, transporte, mineração, geração e transmissão de energia, além do fortalecimento da proteção legal, da fiscalização, do fomento à pesquisa e da popularização do conhecimento das espécies alvo e de seus ambientes.
A construção do plano iniciou em 2019, com a definição da lista de espécies alvo, dos limites do território e a identificação dos principais vetores de pressão. A etapa inicial envolveu analistas ambientais e pesquisadores do Jardim Botânico de Porto Alegre e do Museu de Ciências Naturais. A inclusão das espécies como alvos de conservação observou, como critério, a classificação como criticamente em perigo de extinção, em listas oficiais de espécies ameaçadas, e a ausência de políticas públicas para conservação. Indiretamente, outras 36 espécies da fauna e 125 da flora também serão beneficiadas pelas ações de conservação aplicadas para as espécies alvo.
O processo de planejamento, deflagrado em novembro de 2020, com o apoio da Ortus Consultoria, envolve mais de 50 colaboradores de 20 instituições de diferentes setores da sociedade. Leonardo Urruth, analista ambiental da Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura do Rio Grande do Sul, e coordenador executivo do PAT Campanha Sul e Serra do Sudeste, explica que o trabalho está no primeiro ano de implementação. O ciclo inicial do plano deve ser desenvolvido em cinco anos.
Cenário de contrastes
Com mais de 100 zonas consideradas prioritárias para uso sustentável, em classificação do Ministério do Meio Ambiente, e a menor representatividade no Cadastro Nacional de Unidades de Conservação, constituindo somente 0,3% da área continental protegida no país, o Pampa, cenário do PAT Campanha Sul e Serra do Sudeste, foi o bioma brasileiro que mais perdeu vegetação nativa proporcionalmente em relação ao total de sua área nos últimos 36 anos.
De acordo com dados do MapBiomas, iniciativa multi-institucional que processa imagens de satélites com inteligência artificial e tecnologia de alta resolução em uma rede colaborativa de especialistas, universidades, ONGs, instituições e empresas para a criação de séries históricas e mapeamento de uso e cobertura da terra, o decréscimo de 21,4%, registrado entre 1985 e 2020, coloca o Pampa, segundo menor bioma brasileiro, à frente do Cerrado (-19,8%), do Pantanal (-12,3%) e da Amazônia (-11,6%).
O levantamento do MapBiomas demonstra que as formações campestres ocupavam 46,2% do território do Pampa em 1985. Passados 36 anos, a cobertura representava apenas 32,6%. Enquanto 2,5 milhões de hectares de vegetação nativa desapareceram, neste período, 1,9 milhão de hectares foram ocupados pela agricultura. A atividade, que cobria 29,8% do bioma em 1985, passou a usar 39,9% do território em 2020.
Para o coordenador do mapeamento do Pampa, Heinrich Hasenack, a substituição da formação campestre pela agricultura, além de um desvio da vocação econômica natural, favorece a perda de biodiversidade e liberação de carbono na atmosfera, contribuindo para o efeito estufa. O processo ameaça as espécies alvo do PAT Campanha Sul e Serra do Sudeste, que integra as atividades do projeto Pró-Espécies - Estratégia Nacional de Conservação de Espécies Ameaçadas, criado pelo Ministério do Meio Ambiente, e financiado pelo Fundo Mundial para o Meio Ambiente, que foi implementado pelo Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio) e tem o WWF-Brasil como agência executora.
O avanço da agricultura sobre a vegetação nativa, verificado pelo mapeamento, pode ser notado em todo o bioma, mas foi mais acentuado nas regiões da Fronteira Oeste, do Planalto Médio e Missões, na Zona Costeira e no leste da Campanha gaúcha. Dom Pedrito e Bagé, locais de ocorrência de oito espécies alvo do PAT (cinco da flora e três da fauna), estão entre os cinco municípios que mais perderam vegetação natural no período. A lista inclui, ainda, São Gabriel, Alegrete e Tupanciretã. Hasenack observa que a pecuária sobre campo nativo, atividade mais alinhada aos desafios de preservação da biodiversidade e redução das emissões de carbono, está perdendo espaço, no Pampa, principalmente para as plantações de soja.
A conversão dos campos em áreas de agricultura e pastagem é uma ameaça para o gato-palheiro-dos-pampas e para o sapinho-de-barriga-vermelha-do-pampa, alvos do plano. A expansão das monoculturas, a degradação de habitat ocasionadas por espécies exóticas invasoras, como capim-annoni, o tojo e o pínus, bem como a aplicação aérea de agrotóxicos e a redução de polinizadores, ameaçam diferentes espécies de flora que estão na mira do PAT. As espécies de peixes anuais são ameaçadas pela drenagem dos charcos para plantio de arroz e conversão do habitat para uso agrícola e silvicultura. O Sumário Executivo do PAT Campanha Sul e Serra do Sudeste destaca que a perda de habitat pela expansão urbana e construção de infraestrutura para criação de gado, como barragens e açudes, também impacta estas espécies.
O sistema utilizado pelo MapBiomas para o levantamento não permite avaliar áreas alagadas temporárias. O estudo, porém, apresenta resultados inéditos sobre a superfície de água no Pampa, revelando que na região da Campanha houve um incremento de água com a implantação de açudes para irrigação, principalmente de arroz. O trabalho também detalha o impacto das queimadas, que representam uma média anual de 92,5 km² para o bioma. O fogo é uma ameaça para a espécie de cacto Frailea mammifera, registrada em Dom Pedrito e em Lavras do Sul.
Em uma espécie de reação a este cenário, a promoção de boas práticas de manejo pecuário e o fortalecimento de cadeias produtivas sustentáveis, integrando comunidades locais e entidades governamentais, estão entre os objetivos do PAT Campanha Sul e Serra do Sudeste. O coordenador explica que apoiar práticas ambientalmente amigáveis, como a pecuária sobre campo nativo, ações de integração produtiva lavoura-pecuária-floresta, agroecologia e sistemas agroflorestais, contribui para aliviar a pressão antrópica sobre ambientes e espécies. “Um dos desafios é o engajamento dos produtores rurais, e nossa expectativa é contar com a participação dos órgãos ambientais, de agricultura e extensão rural dos municípios do território, além da Embrapa e Emater”, salienta.
Com causas de degradação tão distintas, como campos degradados por agricultura, silvicultura, invasão biológica, movimentação de solo, drenagem de áreas úmidas, queimadas e desmatamento, experimentos de restauração em propriedades-piloto também estão no horizonte de objetivos do plano. “A ciência reconhece lacunas de conhecimento sobre as melhores técnicas de restauração para diversas dessas situações. Por esse motivo, e aliado ao fato de ser logística e economicamente inviável promover a restauração de todas as áreas do território simultaneamente, é recomendável que o PAT apoie a realização de experimentos-piloto de restauração em diferentes situações para que os resultados dessas experiências orientem futuramente projetos de restauração em escalas maiores no território e no Pampa, de modo geral”, detalha Urruth.
Em defesa dos ambientes sazonais
Expedições de campo, realizadas entre setembro de 2019 e março de 2020, permitiram a análise preliminar de espécies, da qualidade ambiental e pressões sobre ambientes e paisagens no território do PAT Campanha Sul e Serra do Sudeste, que abrange 18 municípios do Rio Grande do Sul, cobrindo uma área de mais de 36 mil quilômetros quadrados, uma extensão maior do que o estado de Alagoas e superior ao território da Bélgica. O trabalho evidenciou a situação do Austrolebias quirogai, uma das 12 espécies de peixes anuais que estão entre os alvos do plano.
Predadores de insetos e larvas de mosquitos, os peixes anuais habitam ambientes aquáticos sazonais, áreas rasas e isoladas de rios e lagos. Diversas espécies povoam o Pampa, em um ciclo anual peculiar, que os tornam popularmente conhecidos como peixes do céu ou peixes das nuvens, vivendo apenas o suficiente para reproduzir, antes do período de seca. Os ovos destas espécies sobrevivem praticamente sem água, enterrados no substrato (em cascalho, argila, areia ou lama), para eclodirem quando o ambiente torna a alagar, no período chuvoso.
Entre as espécies de peixes anuais alvo do plano estão o Austrolebias arachan, que ocorre em poucas áreas alagadas temporárias no baixo curso da drenagem do rio Jaguarão Chico; o Austrolebias melanoorus, que ocorre em áreas úmidas nos municípios de Bagé, Candiota, Herval e Hulha Negra; e o Austrolebias juanlangi, que, no Brasil, ocorre nos municípios de Aceguá, Bagé, Jaguarão, Herval, Hulha Negra e Pedras Altas. Com ambientes drasticamente alterados pelo plantio de soja, estima-se que reste apenas uma população de Austrolebias quirogai íntegra no estado.
O coordenador técnico do Instituto Pró-Pampa (IPPampa), parceiro institucional do PAT Campanha Sul e Serra do Sudeste, Luis Esteban Krause Lanés, destaca que o esforço no sentido da conservação dos peixes anuais envolve demonstrar, aos produtores rurais, que a ocorrência das espécies não impacta a produção, principalmente por habitarem locais de tamanho reduzido. Lanés avalia que, de maneira geral, todo produtor que mantém pecuária em campo nativo, sem converter campo natural em pastagem, e nem realizar drenagens ou açudagens, já é um 'amigo dos peixes anuais'.
Na mira do extrativismo
A Petunia secreta, erva de flores com coloração purpúrea, é endêmica do Rio Grande do Sul, encontrada apenas no município de Caçapava do Sul. A exemplo da Pavonia secreta, planta arbustiva com flores solitárias de coloração rosa, encontrada nos municípios de Bagé, na região da Casa de Pedra, e de Caçapava do Sul, na área da Pedra do Segredo, a Petunia secreta também é restrita ao território do PAT Campanha Sul e Serra do Sudeste.
O extrativismo para comércio de plantas ornamentais é uma das principais ameaças à conservação da Petunia secreta. Sete espécies alvo do plano, aliás, estão ameaçadas pela prática, o que constituiu um desafio pontual. Urruth destaca que a atividade é ilegal, proibida por lei, e passível de autuação administrativa e de processo criminal. “O PAT pretende realizar esforços primeiramente para mapear e compreender quais são os atores que participam desse mercado ilegal: quem extrai, para quem e onde ocorre a venda”, pontua.
O diagnóstico é fundamental para a definição de prioridades e ações de combate ao extrativismo, envolvendo, inclusive, um reforço no sentido da fiscalização. “Qualquer ação complementar, como eventualmente o incentivo ao cultivo de plantas para que seja constituído um mercado positivo, que possa gerar renda e contribuir para a conservação das espécies, só pode ser considerado quando for bem compreendida a situação do extrativismo para cada espécie”, reforça Urruth.
Todo o esforço de preservação também pode ter, ao final, um reflexo positivo para a ciência, resultando na ampliação de pesquisas sobre a biologia básica das espécies, como aspectos reprodutivos. “Se conhece pouco sobre a autoecologia e a história natural de muitas espécies alvo do PAT. Também por isso o PAT é tão importante”, avalia o coordenador.